Solidariedade e gratidão


A solidariedade tem estranhos endereços. De onde não se espera, habitualmente, ela emerge para amparar, consolar, atender.
Jair, um funcionário da Prefeitura de uma grande capital, descobriu que a solidariedade morava no andar debaixo do seu apartamento.
Viera do Interior do Estado e, aos cinquenta anos, vivia sozinho. Não se casara, não tinha filhos.
Na cidade natal deixara irmãos e sobrinhos.
Começou sentindo falta de fôlego para subir escadas, falta de apetite, uma febre que se manifestava todo dia, ao cair da tarde.
Procurou o Pronto-Socorro e recebeu medicamentos que não se mostraram eficazes.
Um dia, ele chegou do trabalho exausto, sem forças para preparar o jantar. Deitou-se no sofá para ver TV e pegou no sono.
A noite foi repleta de pesadelos, febre alta, sudorese e pensamentos delirantes. Quando se levantou, não chegou a dar dois passos.
Teve uma vertigem e caiu sem sentidos. Foi a primeira falta ao trabalho em vinte e dois anos.
O baque do corpo no chão chamou a atenção do vizinho, inquilino recente do apartamento do andar debaixo, chamado Marcelo.
Ele pensou que aquele barulho só podia ser de alguém caindo ao chão. Subiu correndo as escadas, bateu na porta, mas ninguém abriu.
Procurou o porteiro: ele deveria ter uma cópia da chave. Mas não tinha.
Chamou o chaveiro e encontrou Jair semiconsciente, confuso, caído perto da cama, com o cabelo empapado do sangue que escorria do supercílio ferido.
Mal se conheciam. Deviam ter se encontrado talvez umas duas vezes, no elevador.
Mas Marcelo cuidou do vizinho com dedicação exemplar. Trabalhava como garçom e chegava em casa às seis da manhã.
Comprava pão e passava para ver o vizinho. Preparava o café, dava-lhe os remédios e depois descia para dormir.
Voltava para lhe dar o almoço e fazer companhia até a hora de ir trabalhar.
Assistia filmes com Jair. Apanhava na locadora filmes antigos que ele gostava. Quando a febre baixava, lia poesias.
Jair recuperou-se e ficou muito grato a Marcelo. Não fosse por ele, acreditava, poderia ter morrido, sem socorro, em seu apartamento.
Dois anos depois, Jair apresentou um quadro grave de meningite por fungo. Foi internado. E o vizinho voltou a cuidá-lo.
Rosto abatido de quem não dormia direito, foi aconselhado pelo médico a ir para casa dormir, no quinto dia de vigília. Precisava descansar.
Afinal, disse o médico, Jair está com tanta febre, tão mal, que nem percebe que você está aí.
Mas, e se ele acordar? Falou Marcelo. Vou perder a oportunidade de falar com ele.
Todos os dias, ia para o trabalho e voltava para a cabeceira do doente, no hospital.
O desvelo era atribuído à gratidão.
Marcelo era filho de um ferroviário e uma mãe iletrados. Teve que parar de estudar cedo e sempre admirou as pessoas cultas.
As que sabiam conversar, pegar os talheres com educação, que gostavam de poesias como aquelas que Jair pedia para ele ler.
Marcelo aprendera muito nessa convivência e, em nome da gratidão, ficou ao lado de Jair até a sua morte.
Para mim, dizia, é como se fosse meu pai.
*   *   *
Os laços de família vão muito além do estreito círculo da consanguinidade.
É comum se encontrar carinho e dedicação em simples conhecidos, vizinhos, colegas de trabalho.
Seja pela identidade de gostos e ideias, seja porque muitos se constituem verdadeiros reencontros de almas afins, há muitos Jair e Marcelo pela vida.
É sempre salutar cultivar afetos no círculo onde nos movimentamos: vizinhança, trabalho, comunidade.
Amanhã, poderemos necessitar de um braço forte que nos ampare.
Também poderemos nos tornar o samaritano para quem vive próximo de nós.
Estejamos atentos.

Redação do Momento Espírita, com base no cap.A herança, do livro Por um fio, de Dráuzio Varella,
ed. Companhia de Letras.
Em 27.9.2013.




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